Fernando Pereira

quinta-feira, 8 de novembro de 2018

Histórias do Zaire




Histórias do Zaire
Alexandre Cabral
Contos.
ilustração de Rogério Ribeiro.
Orion, Lisboa,1956.
190-páginas
Com alguma mancha na capa e contracapa.
Amarelecido no miolo.
Nunca foi aberto.
Raro
15€
" O "cacholas" transcrevem-se alguns parágrafos:
"Durante as refeições, marcadas pela sineta do chefe, a despeito de se escoarem insípidas, com a galinha e a salada vulgaríssimas mascaradas de «churrasco bercy» e e «salada renascença», a intimidade era mais sentida.
Na 1.ª classe, os passageiros comiam vagarosamente e com o cerimonial exigido pela condição de tal clientela. Já o ambiente da sala de jantar da 2.ª era mais popular, ainda que, aqui e além, é verdade, como flor de estufa no meio de papoilas singelas do campo, um casal esforçava-se por puxar ao fino.
A mesa 9, então, era mesmo um disparate. Composta por empregados dos Caminhos de Ferro, de Moçambique, e outros que entraram no Cabo, representava um tufão vergastando a placidez estabelecida. Os criados receavam muitas vezes que a troca de opiniões, galhofeiras e mordentes, redundasse em disputa.
– O Porto, meu amigo, é uma cidade de trabalho, de gente honesta...
– Propaganda, cavalheiro. Propaganda. Toda a gente sabe que o Porto é a terra das tripas.
– Ah, sim! Então, oiça lá... mas oiça, canudo...
E por mais que gritasse ninguém o ouvia. Os parceiros riam da pilhéria. Tinha sido bem atirada, sim senhor.
Passando à 3.ª, transbordante como a pança de um glutão, verificava-se que a escala da decência tombara a zero. Quer dizer, aqui o pessoal não tinha a preocupação de se intrujar reciprocamente. Por isso mesmo, é de crer, as damas e cavalheiros da 1.ª nunca arriscaram o nariz naquela promiscuidade. Homens e mulheres dormiam pelos corredores, em cima das caixas de madeira, onde guardavam os seus haveres, ocupada como estava a própria sala de fumo. Um inferno! Havia uma expansão de sentimentos, uma confusão de malas e baús, e um odor de estrebaria, que só o campónio habituado aos apertos das carruagens da beira era capaz de tolerar.
O vinho soltava-lhes a língua, chegando um atrevido a proclamar, em altos berros, que estavam a receber um tratamento pior que num campo de concentração fascista. Os criados, gente da mesma laia, ouviram o descoco sem protestar.
Servida a refeição da noite, a orquestra de bordo preparava-se para a função, tocando tangos deliciosos e rumbas barulhentas com o propósito firme de limpar a atmosfera da 1.ª de qualquer mancha de tédio. A juventude divertia-se e até os senhores em idade madura sacrificavam os apertos dos pés a uma volta de dança.
Não sendo permitida a intromissão dos viajantes da 2.ª ou da 3.ª, toleravam-nos, conquanto que vestissem o seu casaquinho domingueiro e se portassem com decência. Ao começo principiaram por espreitar a medo a sala luxuosa e acabaram por tomar conta dos domínios, num abuso intolerável, pensavam as senhoras respeitáveis, que se regiam pelo severo código da melhor sociedade. E tinham razão. Mas também se não fosse o entusiasmo da rapaziada invasora as suas soirées redundavam num estrondoso fiasco.
Às tantas, os homens da orquestra e a menina do piano arrumavam as papeletas, guardavam os instrumentos e recolhiam aos camarotes. A pianista, certamente por espírito romântico, ficava vagueando pela solidão do navio, de braço dado com o terceiro maquinista, de quem, admitia-se, recebia lições de náutica..."
© Blog da Rua Nove"

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